sexta-feira, 13 de maio de 2011

Do português e suas semelhanças com o Alemão. Primeiro estranha-se...


" Das feições da alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é sem dúvida o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que cousa nenhuma, por boa que seja --- e eu não creio que a disciplinas seja boa --- por força que há-de ser prejudicial.
Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando por milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da crítica.
Parecemo-nos muito com os Alemães. Como eles, agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem.
Por isso aqui como na Alemanha nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco. Como os Alemães, nós esperamos sempre pela voz de comando. Como eles, sofremos da doença da Autoridade --- acatar criaturas que ninguém sabe porque são acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objectiva autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de competência nomeou para as responsabilidades da acção. Como os Alemães, nós compensamos a nossa rígida disciplina fundamental por uma indisciplina superficial, de crianças que brincam à vida. Dizemos mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em que a individualidade atrofiou.
Diferimos dos Alemães, é certo, em certos pontos evidentes das realizações da vida. Mas a diferença é apenas aparente. Eles elevaram a disciplina social, temperamento neles como em nós, a um sistema de estado e de governo; ao passo que nós, mais rigidamente disciplinados e coerentes, nunca infligimos a nossa rude e disciplina social, especializando-a para um estado ou uma administração. Deixamo-la coerentemente entregue ao próprio vulto íntegro da sociedade. Daí a nossa decadência!(…)".



texto publicado inicialmente no O Jornal, Lisboa, nº 6, 8 de Abril de 1915

In PESSOA, Fernando, SOBRE PORTUGAL introdução ao problema nacional, ÁTICA, 1978, Lisboa

caricatura de Pessoa a partir de http://www.pessoa.art.br/?page_id=9&lzkfile=pessoa01.jpg

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Um livro para quem gosta de ler e de escrever



Li "O ANIBALEITOR" de Rui Zink, e em algumas das suas páginas decifrei-o como se tratásse de um relato para jovens e gostei; é um livro para quem gosta de ler e de escrever. Entre outros excertos, a fruição desta nota do autor:


"Levualá: volta e meia perguntam a este pobre de mim por "projectos para o futuro", um "novo livro", etc. E lá tenho de desbobinar: Não tenho projectos para o futuro, só para o passado. O futuro esse não vou dizer que a Deus pertence mas está sempre algures entre o brumoso e o enevoado. Se houver saúde e alegria já não me dou por mal servido. Quanto ao passado já é outra história - inclusive porque, à medida que nos vamos afastando dele, a memória criativa o vai mesmo transformando, como quem não quer a coisa mas claro que quer a coisa, noutra história.
Sei que quero um dia escrever sobre a minha infância e os que a povoavam, desde os muitos queridos - o meu avô, o meu tio, os amigos da rua, a filha do sapateiro - aos menos queridos, como o rapaz da Mouraria que me partiu a cabeça com uma pedra da calçada ou o professor Guerra na escola do Torel que, não sendo meu( cruzes credo, o meu era o excelente professor Neves), aterrorizava os meus colegas e me deu as primeiras ganas de montar no meu corcel e fazer justiça. Fora isso não tenho ( nunca tenho, é a minha impressão ) projectos. Com já alguém disse, vou andando por aí, e a mais não me sinto obrigado"

O Aníbaleitor, teorema, (Rui Zink)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Santa Apolónia


Tinha cerca de três anos quando fui a Santa Apolónia pela primeira vez com a minha mãe despedir-me do meu pai, que ia, diz-me o "velhote", de fim de semana a Madrid. Recordo-me da emoção da despedida da minha mãe, não me estava a aperceber bem do que se estava a passar, concentrei-me antes no fundo do cais. O comboio partiu primeiro devagar e toda a cena me parecia passada num teatro (por causa da fachada estilo casa/teatro da gare ?), ao fundo uma tela pintada, orgânica com o comboio a integrar-se nela, a tela a ganhar profundidade, de repente pareceu-me uma selva...o meu pai ia para a selva?
Três da madrugada, insónia. Leio entrevista Publica,31.01.11, Anabela Mota Ribeiro ao psicanalista João Seabra Diniz :
AMR: Dante começa a fazer a sua viagem pouco depois dos 30 anos, entra na selva oscura"
JSD: "Nel mezzo del cammin di nostra vita/ mi ritrovai per una selva oscura "
AMR: Porque sabe de cor a Divina Comédia?"
JSD: Porque gosto!Falo bem italiano. Na Comédia, aparece o famoso episódio de Paolo e Francesca, que se tinham apaixonado. Essa paixão era culpada e por isso estão no Inferno. Quando Dante lá chega com Virgílio, Francesca explica-lhe. "Amor, que não perdoa deixar de amar a quem ama, a este me prendeu com amor tão forte, que ainda, como vês, não me abandona." É o esplendor do amor.
Como é que as crianças tem a intuição que têm? Como é que encontramos o sentido para o que nos acontece ? Como é que precisamos tantas vezes de tanto tempo para dar sentido?