quinta-feira, 30 de setembro de 2010

" O Parque "


Em 1975, vivíamos um processo intenso de participação dos cidadãos em todas as esferas da vida. Os moradores mais antigos do Largo Conde de Bonfim,em São Domingos de Benfica em Lisboa, consideraram que o velho jardim central ao largo já não cumpria a sua função de espaço de lazer e certamente em comissão popular, aproveitando a dinâmica de um vizinho empresário da construção civil, resolvem dotá-lo ou transforma-lo num parque infantil com uma multiplicidade de novos atractivos, a saber, um campo de jogos com balizas e tabelas de basquetebol, uma pista para atletismo ou bicicletas, um corredor para exercício físico de inspiração militar (subida de cordas, barreiras, equilíbrios…), zona de baloiços, uma biblioteca, pontuado aqui e ali por novos espaços verdes, bancos e mesas, e até um WC. O processo de planeamento do novo parque foi concorrido, muito vivido pelos moradores, em reuniões nocturnas na loja e arrecadação de materiais do vizinho empresário, e onde a malta adolescente também se fez ouvir, representada por um de nós, mais velho, que tinha ido à guerra colonial e voltara. A malta queria colaborar, o largo também nos pertencia, era nos bancos de jardim que nos encontrávamos na nossa adolescência nocturna, estávamos como peixes na água, mas não tínhamos desafogo económico, de modo geral não recebíamos mesadas dos pais, quando um de nós recebia uma nota partilhávamos com os outros e íamos ficando por ali. Toda a gente colaborou para a construção do parque infantil, disponibilizando tempo de fim de semana; o sapateiro deu da sua loja, a electricidade para os trabalhos, os moradores, a mão de obra, o empresário de construção civil o seu saber - fazer especializado e materiais e certamente muitos outros contribuíram mas não me apercebi na altura… Alguns equipamentos lúdicos foram improvisados com materiais de construção, reutilizaram-se as pedras dos bancos que já lá estavam e dispostos em novos lugares e para novos usos, plantaram-se novas arvores. Isto em consonância com a Câmara Municipal já que o novo parque seria vigiado por funcionárias municipais assim como ficaria encarregue da manutenção dos espaços verdes. A nós, adolescentes, caberia a animação desportiva e cultural do parque e foi organizado um calendário de actividades, com horários estipulados, para todas as crianças que aparecessem e delas quisessem usufruir; cada um dos adolescentes monitorizava a actividade da sua preferência, treinos de voleibol, de futebol, corridas de atletismo ( Carlos Lopes era já popular e orgulho de todos nós só batido pelo Lasso Viren em Montreal) , actividades de leitura e alfabetização ( tínhamos um bairro da lata ao lado)… E lá estivemos orgulhosos, nas nossas animações, quando se realizou, a um domingo, uma jornada de trabalho nacional!

Dedico este texto a todos os moradores do Largo Conde de Bonfim

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

“ Vá de embute e marque um dos golos da sua vida!”


sexta-feira, 20 de Agosto de 2010

Era Agosto e eu tinha um bilhete de comboio da C.P., em 2ª classe, só de ida, para Mafra, via Oeste, levantado gratuitamente na bilheteira da estação de Cruz da Pedra depois de mostrar o guia m/9 que deveria apresentar na Escola Prática de Infantaria de Mafra para a minha incorporação. Eu não queria ir para a tropa.
Anos antes, numa barbearia de Campo d`Ourique, onde moravam os meus avós, enquanto esperava cortar o cabelo, ouvi falar em tom grave de uns caixões com soldados que chegavam em barcos a Alcântara. Nessa altura eu queria muito ser jogador de futebol e do Benfica, estava convencido que sim, o meu avô tinha-o sido, e também vim a saber mais tarde que os jogadores do clube ficavam livres da tropa, de ir para a guerra em África.
Findo o sonho de ser jogador de futebol, e depois de ter frequentado um curso de educação pela arte, no conservatório nacional, começava a vislumbrar ter um rumo, uma ocupação para o futuro. Para mim era tão desagradável a perspectiva de cumprir serviço militar, que andara a negar a realidade que ele existia para jovens mancebos como eu e de distracção em distracção "esquecera-me" de pedir adiamento de incorporação.
Estava agora no cais do apeadeiro da Cruz da Pedra, acabado de chegar de Marrocos de férias à espera do comboio para Mafra; dentro de um saco castanho duas camisas lavadas e uma folha enrolada de papel selado, a minha declaração de objecção de consciência em que dois amigos testemunhavam que por motivos religiosos, filosóficos e morais me opunha à prática de actividades de índole militar. Um amigo de infância que estava a acabar o curso de medicina falara-me do estatuto, vi uma luz ao fundo do túnel, era uma decisão " pessoal e intransmissível " à família, não disse nada.
Estava na iminência de tomar a decisão entre declarar o estatuto ou ser incorporado, pensava que na primeira hipótese o que me podia acontecer mais chato era ficar a limpar as latrinas da caserna e ficar privado da companhia dos outros.
Parei no Cacém para apanhar outro comboio para me levar a Mafra, teria que aguardar algum tempo, era já perto da hora de almoço, deu para entrar numa livraria e comprar "A República " do Platão e a "Poesia Militante, 1º Volume " de José Gomes Ferreira , queria ir munido de algum "alimento espiritual " para o que desse e viesse. Depois entrei num café para comer alguma coisa. À minha frente na parede do café um cartaz do Totobola de início de época futebolística. Dizia MARQUE O GOLO DA SUA VIDA! E eu pensei cá para os meus botões que se conseguisse ver-me livre da tropa seria um grande golo na minha vida. Entregaria o estatuto.
Apanhei o comboio para Mafra, nele vinha um jovem como eu, peça fora daquele puzzle da incorporação, da tropa, da instrução militar…. A estação ou apeadeiro ferroviário que servia Mafra ficava a alguns quilómetros que tinham que ser transpostos numa camioneta de carreira, composta nesta altura por vários jovens prontos a serem incorporados. O pica-bilhetes enquanto percorria o corredor da camioneta entre solavancos perguntava o destino aos passageiros e sorria sarcástico" Ah ! Este também vai para a "Calhau! " sugerindo tratar-se de um sítio de vida dura. Para o "Calhau"? Que se referia ao Convento de Mafra, cuja forma arquitectónica imponente se assemelha a uma enorme pedra. Perto da vila comento com o meu companheiro ocasional de viagem que vou pedir o estatuto de objector, ele já tinha ouvido falado nisso mas não tratara…
"Já à porta da guerra", como diria Raul Solnado, entre jovens das várias incorporações para esse dia, vejo um pequeno grupo e acerco-me por me parecer ter ouvido falar de objecção de consciência e percebo que um deles diz que pedira o estatuto, que iriam analisar o pedido e que entretanto podia ir embora. Quero confirmar e pergunto-lhe.
Corredor de acesso à Escola Prática de Infantaria, aguardamos em fila, ladeados por peças de artilharia de museu. Avanço com a folha de papel selado azul 35 linhas vejo um militar mais experiente que procedia à recepção do novos incorporados e entrego-a. Aguardo uns momentos e depois pergunto-lhe "Quando é que confirmam?", "VÁ DE EMBUTE!" retorquiu-me.
Percorri o corredor em sentido inverso, muito rápido, com o meu saco castanho, com duas camisas e dois livros, saí e dirigi-me à frente do Convento a uma paragem de camionetas onde estava uma que dizia LISBOA e mal me sento ela arranca. A paisagem que vou vendo da janela no decorrer do percurso da camioneta, parece-me uma cortina a ser puxada sobre Mafra.

domingo, 5 de setembro de 2010

Porque é que nós contamos as histórias das nossas vidas?


"A quem as contar? Que objectivo perseguimos ao fazê-lo ? "(...) " Mas nada parece poder nos desencorajar. Nós vamos antes de mais construindo-nos através da narrativa. Porque nos é tão essencial? Porque temos tanta necessidade em nos definirmos?" (...)

" Eu coloco a hipótese que é graças à narrativa ( autobiográfica ) que criamos e recriamos a nossa personalidade, e que o Eu é o resultado das nossas narrativas e não uma espécie de essência que nós devíamos descobrir explorando as profundezas da subjectividade." (...)

Logo que temos esta capacidade ( de recontar )"(...) então nós podemos construir uma personalidade que nos religa aos outros, que nos permite retornar de maneira selectiva ao nosso passado, preparando-nos para enfrentar um futuro que imaginamos. É na nossa cultura que possuímos as narrativas que permitem contarmo-nos a nós próprios, que tecem e voltam a tecer sem cessar o nosso Eu. Nós estamos certamente dependentes de um cérebro que deve estar pronto e em condições para que construamos a nossa personalidade. Mas por mais forte que seja esta dependência nós somos virtualmente desde o nascimento, expressões da cultura que nos alimenta. Entretanto a cultura é ela própria uma dialéctica onde abundam narrativas de todos os géneros que nos dizem o que é ou o que deveria ser o Eu. E as histórias que inventamos para construir a nossa personalidade contem a marca desta dialéctica."

traduzido do françês
Jerome Bruner Pourquoi nous racontons-nous des histoires? éditions RETZ