segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Judite

Existem pessoas nas nossas vidas que pensamos que existirão para sempre, as que nunca deixaram de estar, mesmo que por vários condicionalismos a sua  presença se circunscrevesse aos parabéns dados pelo telefone pelos aniversários de todos os da família, sempre e sem falhar.  Perante a evidência da possibilidade de poderem deixar de estar físicamente connosco, abre-se a porta do coração e damos conta de tão importante aquela pessoa foi e é para nós , de uma maneira radicalmente única. A Judite, criou-me. Era uma rapariga na flor dos seus 20 anos e foi trabalhar para a casa dos meus pais em Lisboa, deixando o seu Montijo natal e a família pobre e com muitas bocas para comer. A Judite escrevia o seu nome numa caligrafia irregular mas foi ela que me proporcionou a minha primeira experiência estética, como se fosse a animadora de uma oficina artística de um Centro Artístico Infantil da Gulbenkian , ao desenhar o contorno do meu corpo em papel castanho de embrulho, no chão da cozinha depois de devidamente arrumada e onde ela dormiria a seguir num divã que retirava da dispensa. Foi ela que me disse numa voz terna e com muita tristeza que o meu avô materno tinha falecido.Foi ela que conteve a minha ira quando aos 5 anos fiquei a saber que era menina o irmão que eu esperava para poder jogar à bola. De uma coragem física assombrosa, por aqueles que considerava uma família do coração , a Judite arriscava passar descalça de uma varanda de 3º andar esquerdo para o do direito de um prédio de Lisboa, casa dos patrões porque a porta se tinha fechado e não tinha chave para entrar, percorreu quilómetros a pé com um cesto de compras pela linha férrea de Ferreira a Tunes porque perdera o comboio e os patrões e os meninos que estavam na praia em Albufeira iam chegar para almoçar; actos impensáveis para os meus pais e imagino com que susto deles tomaram conhecimento. Um dia, em Novembro depois de telefonar a parabenizar meu pai, retirou-se ; não de nós , da nossa memória da nossa eterna gratidão.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Até sempre, Guilherme Espírito Santo

Guilherme Espírito Santo foi não só um grande avançado de centro do Benfica, decisivo na conquista do segundo Camponato da Liga pelo Benfica (1936/37), como foi um atleta de eleição nas décadas de 30 e 40, já que foi igualmente recordista nacional durante 20 anos, do salto em altura ( com a marca de 1,88m).Foi um dos mais populares deportistas portugueses da sua era e ficou conhecido como " Pérola Negra ".
Na foto em primeiro plano, alguns dos mais populares jogadores do SLB,à época; da esquerda para a direita Alfredo Valadas, Luiz Xavier, Gaspar Pinto e Espírito Santo. Em miúdo lembro-me da visita que Espírito Santo fez a meu avô, seu companheiro na linha avançada do benfica e dez anos mais velho, na altura enfermo em casa. Também me lembro muitos anos mais tarde, da última visita que lhe fez no hospital. Camaradagem. Amizade. Até sempre Espírito Santo

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Do português e suas semelhanças com o Alemão. Primeiro estranha-se...


" Das feições da alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é sem dúvida o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que cousa nenhuma, por boa que seja --- e eu não creio que a disciplinas seja boa --- por força que há-de ser prejudicial.
Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando por milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da crítica.
Parecemo-nos muito com os Alemães. Como eles, agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem.
Por isso aqui como na Alemanha nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco. Como os Alemães, nós esperamos sempre pela voz de comando. Como eles, sofremos da doença da Autoridade --- acatar criaturas que ninguém sabe porque são acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objectiva autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de competência nomeou para as responsabilidades da acção. Como os Alemães, nós compensamos a nossa rígida disciplina fundamental por uma indisciplina superficial, de crianças que brincam à vida. Dizemos mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em que a individualidade atrofiou.
Diferimos dos Alemães, é certo, em certos pontos evidentes das realizações da vida. Mas a diferença é apenas aparente. Eles elevaram a disciplina social, temperamento neles como em nós, a um sistema de estado e de governo; ao passo que nós, mais rigidamente disciplinados e coerentes, nunca infligimos a nossa rude e disciplina social, especializando-a para um estado ou uma administração. Deixamo-la coerentemente entregue ao próprio vulto íntegro da sociedade. Daí a nossa decadência!(…)".



texto publicado inicialmente no O Jornal, Lisboa, nº 6, 8 de Abril de 1915

In PESSOA, Fernando, SOBRE PORTUGAL introdução ao problema nacional, ÁTICA, 1978, Lisboa

caricatura de Pessoa a partir de http://www.pessoa.art.br/?page_id=9&lzkfile=pessoa01.jpg

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Um livro para quem gosta de ler e de escrever



Li "O ANIBALEITOR" de Rui Zink, e em algumas das suas páginas decifrei-o como se tratásse de um relato para jovens e gostei; é um livro para quem gosta de ler e de escrever. Entre outros excertos, a fruição desta nota do autor:


"Levualá: volta e meia perguntam a este pobre de mim por "projectos para o futuro", um "novo livro", etc. E lá tenho de desbobinar: Não tenho projectos para o futuro, só para o passado. O futuro esse não vou dizer que a Deus pertence mas está sempre algures entre o brumoso e o enevoado. Se houver saúde e alegria já não me dou por mal servido. Quanto ao passado já é outra história - inclusive porque, à medida que nos vamos afastando dele, a memória criativa o vai mesmo transformando, como quem não quer a coisa mas claro que quer a coisa, noutra história.
Sei que quero um dia escrever sobre a minha infância e os que a povoavam, desde os muitos queridos - o meu avô, o meu tio, os amigos da rua, a filha do sapateiro - aos menos queridos, como o rapaz da Mouraria que me partiu a cabeça com uma pedra da calçada ou o professor Guerra na escola do Torel que, não sendo meu( cruzes credo, o meu era o excelente professor Neves), aterrorizava os meus colegas e me deu as primeiras ganas de montar no meu corcel e fazer justiça. Fora isso não tenho ( nunca tenho, é a minha impressão ) projectos. Com já alguém disse, vou andando por aí, e a mais não me sinto obrigado"

O Aníbaleitor, teorema, (Rui Zink)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Santa Apolónia


Tinha cerca de três anos quando fui a Santa Apolónia pela primeira vez com a minha mãe despedir-me do meu pai, que ia, diz-me o "velhote", de fim de semana a Madrid. Recordo-me da emoção da despedida da minha mãe, não me estava a aperceber bem do que se estava a passar, concentrei-me antes no fundo do cais. O comboio partiu primeiro devagar e toda a cena me parecia passada num teatro (por causa da fachada estilo casa/teatro da gare ?), ao fundo uma tela pintada, orgânica com o comboio a integrar-se nela, a tela a ganhar profundidade, de repente pareceu-me uma selva...o meu pai ia para a selva?
Três da madrugada, insónia. Leio entrevista Publica,31.01.11, Anabela Mota Ribeiro ao psicanalista João Seabra Diniz :
AMR: Dante começa a fazer a sua viagem pouco depois dos 30 anos, entra na selva oscura"
JSD: "Nel mezzo del cammin di nostra vita/ mi ritrovai per una selva oscura "
AMR: Porque sabe de cor a Divina Comédia?"
JSD: Porque gosto!Falo bem italiano. Na Comédia, aparece o famoso episódio de Paolo e Francesca, que se tinham apaixonado. Essa paixão era culpada e por isso estão no Inferno. Quando Dante lá chega com Virgílio, Francesca explica-lhe. "Amor, que não perdoa deixar de amar a quem ama, a este me prendeu com amor tão forte, que ainda, como vês, não me abandona." É o esplendor do amor.
Como é que as crianças tem a intuição que têm? Como é que encontramos o sentido para o que nos acontece ? Como é que precisamos tantas vezes de tanto tempo para dar sentido?

sábado, 25 de dezembro de 2010

memórias da escola primária nos anos 60

O externato era num rés do chão de quatro assoalhadas adaptado a escola, num prédio situado num largo com jardim em Lisboa. O "Se´sôr", abreviatura de senhor professor, vivia no 1º andar desse mesmo prédio, andava com uma cana comprida na mão, fumava "Definitivos", segurando o cigarro com os dedos amarelos, por vezes a cinza caia no chão.
Era tudo muito auditivo, a palavra do professor, as tabuadas cantadas, a leitura dos textos em voz alta, restava pouco para o visual ! Muita repetição nos cadernos, a escrita em duas linhas, a aritmética no papel quadriculado , não me lembro de caderno de desenho a partir da 2ª classe, relegado para o espaço em branco do cabeçalho por cima das cópias, vá lá, 3 centímetros, a ilustrar. Gostava do exercício da cópia de palavras difíceis numa tira de papel pautado, dividida ao meio, à esquerda o modelo bem escrito, à direita o espaço para copiar correctamente, era o " linguado ", gostava destas palavras que imaginava preencherem a "espinha do peixe".
Da casa do professor no 1º andar, vinha às quintas feiras de manhã a telefonia para o programa musical da emissora nacional, pegado em peso, cuidado com o estrado, no lugar do "Se`sôr" a telefonia, em cima da secretária, tínhamos de esperar que as válvulas aquecessem para o hino nacional, para a marcha da mocidade portuguesa, lá íamos "marchando e rindo…cantando, levados " sim levados, o pretinho Barnabé…a loja do mestre André...o burrinho que ia para ..., carregadinho de …! Nós gostávamos desta meia hora de audio, era uma quebra da rotina das cópias , dos ditados, os" tanques " enchiam-se à tarde de problemas de aritmética.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

" De volta à escola primária "


Andava eu a tentar escrever um post sobre a minha escola primária, vivida há mais de 40 anos atrás, num externato masculino instalado num rés do chão de quatro assoalhadas adaptado a escola, num prédio situado num largo com jardim, em Lisboa. Uma das recordações que guardo desses tempos e desse espaço escolar, é a de uns cartões estampados com cenas da História de Portugal , que encontrava na cozinha desactivada a servir de arrecadação, sempre que o professor me mandava lá ir buscar ou levar alguma coisa, e que me fascinavam a mim e aos meus colegas; investidas de exércitos, batalhas a cavalo, o vermelho vivo dos guerreiros feridos, assaltos a castelos, reis à frente das suas tropas, belas e exemplares rainhas, grandiosos feitos arrumados num caixote, mas que passávamos rápido no risco de nos estarmos a distrair, de qualquer outra coisa mais essencial.
Se me lembro bem, estes cartões nunca saíram para a sala de aula. Era tudo muito auditivo, a palavra do professor, as tabuadas cantadas, a leitura dos textos em voz alta, restava pouco para o visual ! Muita repetição nos cadernos, a escrita em duas linhas, a aritmética no papel quadriculado , não me lembro de ter caderno de desenho a partir da 2ª classe, actividade relegada para o espaço em branco do cabeçalho por cima das cópias, vá lá, 3 centímetros, a ilustrar.
Eu estou para jurar que encontrei essas cenas da História de Portugal em 2010. em forma de livro - album editado pela Gradiva; afinal eram aguarelas de Alberto de Sousa e quadros de Roque Gameiro, publicado pela primeira vez na 1ª República e já não reeditado desde 1932. Os quadros foram desaparecendo das escolas, o livro desaparecendo das livrarias , talvez pelas malhas que as ditaduras tecem, estou certo que o poderíamos comprovar, históricamente falando.

Imagem: Cerco de Lisboa , por Roque Gameiro